mistério de são joão
#11 "das palavras que escutamos no tempo dos sonhos e que preferimos, pois são nossas" (Davi Kopenawa)
invisível.
um cazumbá de alguns centímetros de altura dá os primeiros passos para formar o redemoinho no terreiro. Guardo essa imagem e sei que ela pode me escapar a qualquer minuto. Não existe tecnologia fotográfica ou fílmica que consiga capturar o instante em que uma criança vestida com uma máscara e uma túnica bordada com canutilhos abre o espaço e inaugura outra temporalidade. Já não é mais uma criança e é uma criança, “um bicho, planta, pedra, homem, mulher”. O cazumbá adulto já não é um adulto, é o guardião do tempo nascente, o da imprevisibilidade, a figura que brinca atentando e protege a brincadeira que começou. O dicionário relaciona cazumbá com cazumbi, nome derivado do banto que significa alma errante, fantasma ou pessoa de hábitos noturnos.
Na primeira vez em que vi um cazumbá me lembrei da sensação de uma história que tio Zé contava quando eu me assustava com uma rede balançando e não sentia o sopro do vento. Era criança pequena, cinco, talvez seis anos, e sentir na pele o vento e ver a rede balançando trazia uma relação de causa e consequência que me tranquilizava. Quando isso não acontecia, o balanço da rede fazia meu coração disparar. “É o espírito de uma mulher que matou os filhos e depois se arrependeu, ela coloca os dois na rede e fica balançando”. Tempos depois ouviria essa história de um outro jeito nos livros e me perguntei: mas como cargas d’água tio Zé teve notícias de Medeia? Uma vez ouvi Ronaldo Correia de Brito dizer que isso acontecia constantemente quando ele ia, como médico, atender no sertão, e escutava na mesa do café da noite alguém contando uma história que ele reconhecia como Rei Lear. Criança, sem saber de Medeia, ficava ao mesmo tempo apavorada e curiosa. Os batimentos do coração não diminuíam e começava uma série de perguntas: do que eles morreram? o que é um espírito? por que aqui nessa casa?
É o primeiro registro que tenho de ouvir sobre fantasmas e guardei uma sensação que traz um amálgama entre o espanto e desejo de saber. Algo que está ali e não está, rompe com a relação linear que eu poderia estabelecer do vento como causador de um fenômeno. Longe de paralisar, é uma sensação que me coloca num movimento de abertura para o que não conheço. Nem sempre, tenho meus pontos de recuo diante de algo que foge muito à minha grade epistemológica (pessoas que são contra a taxação dos super-ricos, por exemplo, essas eu não entendo); mas, de uma forma abrangente, o mistério costuma ser uma causa de movimento.
E eu disse que ver um cazumbá pela primeira vez me trouxe a sensação de uma história. A palavra sensação é importante aqui porque cria uma impossibilidade de que aquela história se insira em uma cronologia, começo, meio e fim. Ela acontece nos encontros furtivos com aquilo que eu não consigo colocar dentro de um espaço circunscrito. Enquanto escrevo sinto o cheiro da fumaça do cigarro de tio Zé e aquela traquinagem de quem sabia que estava transmitindo uma história de terror para uma criança.
o tempo do sonho.
futuro anterior, tempo espiralar, são todos nomes que surgem enquanto escrevo para dizer do que acontece. No largo, quando o cazumbá abre o terreiro para que o redemoinho se inicie e no interior da casa da infância quando a rede balança sozinha. Comecei a escrever algumas coisas sobre a origem para Lacan e como o tempo é constituído a partir de uma anterioridade lógica do futuro em relação ao passado. Mas, pude ouvir, num sussurro, uma coisa de quando estive pela primeira vez em São Luís no mês de junho.
Lia “A queda do céu”, o trecho em que Davi Kopenawa fala sobre a noção de memória dos brancos e o pensamento tortuoso e espinhoso dos registros que tem como base a escrita e o fascínio exclusivo pelos traços desenhadas na pele do papel. O branco sente tanto fascínio pelo que ele próprio escreve que deixa de olhar o mundo ao seu redor, preso naquilo que a escrita criou como forma de pensar. “Se não seguirem seu traçado, seu pensamento perde o rumo. Enche-se de esquecimento e eles ficam muito ignorantes”. Ele traz aí uma noção de que escrevemos para esquecer, ao mesmo tempo em que fixamos a memória em uma única forma ao escrevê-la. Diferente dos “nossos antepassados que não possuíam peles de imagens e nelas não inscreveram leis”.
Escuto o sussurro e entendo o que ele quer dizer. Tentei iniciar esse texto com o São João pelo menos umas treze vezes e em todas elas me senti artificial, fazendo alguma coisa inútil, como se tentasse dizer algo que não é para ser dito. Têm coisas que não se aprendem fixando os olhos no papel, diz Kopenawa, coisas que precisam ser vistas bebendo o sopro de vida com o pó de yãkoana. Assim acontece a transmissão, pelo sopro que, ao se estender, multiplica as palavras e espalha o pensamento em várias direções.
Kopenawa faz, em “A queda do céu”, o esforço de ditar aquelas palavras escritas numa tentativa de se fazer ouvir e cria ao mesmo tempo uma advertência: não são palavras para acordar, são para dormir, é no silêncio da floresta que os xamãs bebem o pó das árvores yãkoana hi e têm sua imagem levada para o tempo do sonho. É dormindo que se abre a possibilidade de ouvir os cantos e contemplar as danças. O sonho é a escola onde se aprendem as coisas de verdade. O tempo do sonho, o futuro anterior, nos ajuda a pensar no que terá sido.
Eu entendo o que ele quer dizer e respiro fundo antes de lamentar: “mas eu escrevo”. Escrevo porque, por alguma coisa que foge a mim mesma, não tenho o mesmo talento para contar histórias que meu tio Zé, nem eu avô (deixei o lapso, talvez esse texto esteja todo aqui), nem minha avó e minhas tias, nem todas as pessoas que entravam pelas portas sempre abertas da casa da infância. Eles e elas têm, com certeza, muito mais proximidade com os antepassados de que fala Kopenawa, que não possuíam peles de imagens e não inscreveram nelas suas leis. Não lá, na floresta, mas no sertão, próximos de uma forma de estar no mundo que eu tento cada vez mais escrever sem escrever.
Na escrita do livro estive perto de um conceito de Jean-Luc Nancy chamado corpo excrito. É o meu ensaio favorito, o ensaio que começa com um sonho. Não tenho mais condições de escrever nada além do que está lá sobre esse assunto, então vou me citar:
É diante dessa estrangeiridade que Nancy faz a proposta de escrever o corpo, uma vez que a escrita também é algo processado no terreno do estrangeiro e do desconhecido. O corpo, situado no limite, na extremidade, está em posição de ser escrito, por um estilo de escrita que se dispõe a contornar esses terrenos de fronteira, litoral. Escrever como um gesto de tocar a extremidade é escrever na tentativa de tocar o corpo – mas como tocar o corpo sem significá-lo ou obrigá-lo a significar? Essa é a questão que nos coloca Nancy (2000), uma pergunta que também arrodeio aqui neste livro: pensar o corpo com a frantumaglia e a smarginatura sem cair na tentação de dizer que o corpo está estruturado de uma ou outra forma. Traçar um contorno para esse corpo que seja pontilhado, cheio de espaços vazios onde outras coisas possam ser tecidas juntas para expandir o corpo.
Essa é a pergunta sobre escrita que mais me assombra e comove: como tocar nisso - nesse assunto, tema que é minha companhia de escrita - sem prender num significado ou obrigar a significar alguma coisa. Em outras palavras, sem colonizar. Como escrever sem entrar nessa lógica de que fala Kopenawa, de ficar tão fascinada pelo traçado da letra no papel a ponto de não ver mais o mundo ao meu redor buscando inserir o que estou vendo nessa grade? Como escrever com o papel escapando à sua natureza de ser um espaço de armazenamento de informação/memória e sim algo que expande o pensamento?
voltando ao estado de folha, escuto de novo o sussurro.
Como habitar o mundo que não precisa da escrita e segue acontecendo à sua revelia e o mundo em que a escrita dá um contorno inigualável à experiência?
Nunca vou ter respostas para essas perguntas, elas me mantém em movimento. Parece que tenho um indício de caminho quando penso que a escrita é a mãe que eu não conseguia ver balançando a rede com os filhos mortos. A escrita é isso que me tira de um conforto linear e temporal para a experiência. É o que faz uma dobra fantasmagórica naquilo que não pode ser contido numa história de começo, meio e fim.
fora do eixo.
o som da matraca.
existe um instante, antes do início da apresentação do boi de matraca em que um som indiscernível toma conta do terreiro. O cantador já disse os primeiros versos, sem acompanhamento de nada além da própria voz, então eu não estou falando da ultrapassagem de uma suposta linha de largada, e sim de algo que acontece antes das matracas entrarem no espaço sonoro. Em uma das apresentações da Maioba esse ano vi, junto com esse som, uma névoa, e na hora, juro, pensei se não tinham jogado alguma coisa no ar para fazer todo mundo dormir. Talvez seja esse o som que escuto, do sono antes dele chegar. O som dos olhos se fechando.
Não é sempre que isso acontece e não dá para prever quando isso pode acontecer. A ida para brincar no boi é uma espécie de chamado para a possibilidade de que tudo pode acontecer, inclusive nada.
Ontem Ananda enviou esse vídeo sobre os sotaques do boi. É como se diz da forma como cada boi ecoa. A lógica é a mesma aplicada à língua: todos eles falam um idioma parecido, mas cada sotaque soa diferente. O sotaque de matraca é um deles. Nascido nas margens da ilha, gira em torno de um instrumento de percussão criado com dois pedaços de madeira que produz um som singular. Pelo que já pude ouvir, cada matraca soa de um jeito, cada nota contém o som de todas as matracas juntas. No vídeo, Carlos menciona que o sotaque é uma forma de tentar delimitar aquilo que não pode ser delimitado: a maneira como cada boi escolhe criar. Então, apesar da junção em torno de grupos, que é importante, existe a tensão de que cada grupo crie sua própria forma de se expressar.
Um som é ouvido antes das matracas entrarem no tempo-espaço do terreiro. Um som de neblina, bagunça os sentidos. Esse som talvez seja o instante em que se perde essa noção de uma matraca, todas as matracas
o som do sonho criando o espaço.
é simples.
aqui em São Luís é comum tratarem o boi com uma pegada forte de identidade. E eu compreendo essa necessidade como uma forma de resistência, são grupos formados por pessoas que estão e são mantidas às margens. Historicamente o bumba meu boi surge na periferia e houve um tempo em que ele era proibido em São Luís. Ano passado, meu primeiro São João inteiro passado na ilha (antes tinha vindo só em alguns dias), li alguns textos que falavam disso, mas uma pesquisa rápida no google já diz: no século XIX, a manifestação cultural foi reprimida e chegou a ser proibida de ser apresentada em público por alguns anos. Essa proibição, em parte, ocorreu devido à associação do bumba meu boi com a população negra e a possibilidade de gerar desordem pública.
Então, é preciso agrupar para que a liberdade de brincar seja mantida. E também para garantir as condições materiais da brincadeira, é assim que são feitas as políticas públicas. Há um forte aspecto de reafirmação do pertencimento pelo Maranhão nas letras, só que de um lugar muito diferente. Eu vou ser ousada e dizer que também tem sempre algo que subverte esse pertencimento para algo que não pode ser contido nas fronteiras de um lugar. O mais bonito talvez seja que uma coisa não anula a outra, da forma como acontece elas podem coexistir. Poderia passar um tempo trazendo exemplos de movimentos e toadas que dizem isso, mas eu tenho pensado numa coisa que ganhou outro contorno depois que ouvi um áudio de Marcos da Maioba (enviado por Hesaú) sobre uma dúvida minha: por que as toadas do boi da Maioba falam tanto em rosa e roseira?
Ah isso é fácil, fácil mesmo. A Maioba ela se configura, desde que começou, como uma roseira. O boi da Maioba representa isso. E, várias pessoas cantam, por exemplo, lá no Maracanã, eles cantam pra palmeira, o Maracanã em si iniciou dali, iniciou da palmeira, e aí eles cantam muito pra palmeira, a Maioba iniciou de uma roseira, por isso a gente chama de rosa cheirosa, eu canto muito pra roseira, o Chiador cantava muito pra roseira, Dá na vó iniciou isso que foi o primeiro cantador, Chagas também fez, executou, muita toada pra roseira, e hoje eu executo com essa simbologia do boi da Maioba ser uma roseira cheirosa de dentro do estado.
É simples.
Essa é a transcrição do áudio e tem várias coisas que chamam a atenção nessa explicação além de querer saber a razão de um apelido como Dá na Vó (a internet me disse que essa informação foi/é mantida a sete chaves). O nome de Dá na Vó era Luiz Rosa Gonzaga e pode ser que a relação com a roseira venha daí. Se pensamos numa lógica de nomeação, Rosa pode ser o nome da mãe. Mas, como bem diz nosso amigo pouco conhecido Shakespeare, numa citação ainda menos conhecida, “o que há num nome? uma rosa, com qualquer outro nome, terá o mesmo perfume” e eu poderia ficar aqui arrodeando infinitamente atrás de um significado, criando significações em torno disso, quando o que parece interessante aqui é o efeito de transmissão que o significante “rosa cheirosa” teve para o grupo. O boi da Maioba, uma roseira cheirosa de dentro do estado.
O nome, seja ele qual for, pode ser uma delimitação: maioba, maranhão, rosa. Mas o cheiro, isso não pode ser apreendido, é o próprio gesto de se constituir enquanto algo que desarranja essa fronteira imposta pela nomeação. É o que cria uma lacuna nessa linha que estabeleceria, ao nomear, uma fronteira. E ao criar uma brecha, ativa uma nova ortografia.
O final do áudio, “é simples”, é minha parte preferida. Assim como eu ouvi o sussurro de Davi Kopenawa quando comecei a escrever esse texto, escuto esse “é simples” como alguém que me aponta o caminho. O cheiro de uma rosa e a possibilidade de transmitir aquilo que cria um desarranjo no ordenamento das coisas.
(uma nota sobre o cheiro em Maíra, de Darcy Ribeiro)
Anacã, o guia espiritual dos Mairuns, morre ao decidir que vai dormir e nunca mais acordar. Já viveu bastante e como guia daquele povo, entende que é necessária uma renovação. Para Anacã não é erigido um túmulo, seu corpo é colocado em uma cova aberta com uma leve camada de terra por cima. Regado todos os dias, o longo tempo de decomposição é preenchido por uma série de ritos envolvendo a comunidade.
O cheiro do corpo de Anacã entranha-se no corpo dos demais.
É esse o elemento físico que cria um lugar para ele. Antes de desaparecer do território, o cadáver se confunde no ar que as pessoas respiram, tornando-se também parte delas. Há uma inscrição da morte no corpo daqueles que continuam vivos, uma escritura que envolve todos os sentidos.
ao meio-dia parece vísivel, realça a miragem da mata invertida no céu. O chuvisco da noite assenta a poeira do pátio e lava os ares para que impere, mais forte, a catinga de Anacã. Ela continua aí presente impregnando tudo: finíssima, dulcíssima. Agora parece também azul.
A passagem do corpo para o ar pressupõe o abandono de uma forma determinada em favor da presença que, ao volatilizar-se, sempre está lá. No corpo daqueles que estiveram ao seu redor.
Essa escritura do cheiro do cadáver no corpo é o que pode ser lido de Anacã nas gerações futuras.
pertencer/ não-pertencer.
ouço perguntas aqui e acolá sobre o que uma não-maranhense vê no bumba meu boi. Perguntas que não chegam diretamente como uma interrogação, mas com um olhar de espanto. Um espanto que não se restringe aos ludovicenses, lembro de ter ouvido ano passado de uma pessoa de outro lugar que já mora aqui há 10 anos que o boi é bonito, mas você viu uma vez, não precisa ver novamente. Então, parece que tudo bem, como estrangeira, ir ver uma apresentação ou outra num arraial, afinal, é uma festa também feita para turistas. Como disse, políticas públicas, a brincadeira precisa encontrar um jeito de se manter e isso acontece com a tomada do que acontece sob um ponto de vista da manifestação cultural, folclórica. E, apesar de ter lido algumas coisas questionando esses termos, jamais ousaria falar algo, de cultura conheço, com o velho Freud, apenas o mal-estar. Então, ouço com um certo divertimento o espanto dos outros, e ele volta para mim como uma pergunta.
Que eu não chego nem perto de responder, também não entendo. De vez em quando avento uma hipótese: ah eu cresci no meio de boi, meu vô criava gado no sertão, então enquanto ouvia as histórias de tio Zé e dele eu também pensava em qual melhor jeito de atravessar um curral sem atolar o pé em estrume. Eu sei o que é essa relação com um animal de sustento, da vida depender dele, da ausência do boi tornar tudo muito mais difícil. Mas são hipóteses. O que eu sei hoje é da emoção de ver o miolo se metamorfoseando em boi. Levantando pela primeira vez o bordado novo no dia do batizado enquanto o cantador diz “Senhor São João, venha receber, essa coisa linda que fizemos pra você”.
Ano passado foi um período junino inteiro tentando aprender algumas toadas, o funcionamento das coisas, saber que existem bois de 170 anos, ou seja, existem bois da mesma idade de Aracaju, a cidade onde nasci. Um mês tentando ler o movimento do corpo dos cazumbás, o cheiro das penas do caboclo, o som, o som das diferentes percussões, a relação com a encantaria e o catolicismo. Perceber que existem bois mais íntimos, outros mais abertos, o susto quando me dei conta dos movimentos de redemoinho que alguns deles fazem. Via e sentia coisas que estavam no meu campo de atenção há anos e coisas que expandiam esse campo ao infinito.
Esse ano a coisa já foi um pouco diferente, aprendi algumas coisas, lugares, ensaiei algumas palavras num idioma novo. E se, lembrar do texto do Kopenawa me fez tomar muito cuidado ao escrever essas notas, teve um outro texto que me acompanhou para entender um tantinho o que me faz ouvir o chamado dessa brincadeira. Ele se chama “Um mapa para a porta do não-retorno: notas sobre pertencimento” (tradução Jess Oliveira e floresta) e Dionne Brand começa esse livro falando sobre uma lacuna. Aos treze anos, Dionne queria muito saber de que povo eles vieram e seu avô afirmava saber, mas só conseguiria dizer se escutasse o nome. Dionne conta que importunou o avô com perguntas, fez pesquisas por conta própria, para ela era muito significativo ser alguma coisa e pertencer a um lugar. O avô não se lembrou e essa lacuna criada pela pergunta instaurada sobre ser de algum lugar foi se alargando para a menina. Ela diz que, com o tempo,
o nome do povo de onde viemos parou de importar. Um nome consolaria uma menina de treze anos. A pergunta, no entanto, era mais complexa, mais matizada. Aquele momento que meu avô e eu compartilhamos há décadas revelou uma brecha no mundo. Uma resposta simples teria emendado essa falha geológica rapidamente. Eu seguiria adiante feliz com um simples nome. Eu teria brincado com esse nome por uns dias e então o guardaria. Esqueceria. Mas a ruptura que essa troca com meu avô revelou era maior que a necessidade de laços familiares. Era uma ruptura na história, uma ruptura na qualidade de ser. E também uma ruptura física, geográfica.
Não ter um nome ao qual recorrer aponta para uma fissura entre o passado e o presente. Dionne cria, para essa rachadura, uma figura que ela chama de Porta do Não Retorno: “aquele lugar de onde nossa ancestralidade partiu de um mundo para o outro (…) o lugar onde todos os nomes foram esquecidos e todos os começos, reencenados”.
Esse livro vai voltar em outros momentos, ele me impressiona tanto, mas quero terminar, por ora, com essa passagem em que ela nos diz: um nome tamponaria a fissura e seria esquecido. Aquilo que não entra no sistema de nomeação, no entanto, tem a possibilidade de se imiscuir no corpo e causar movimento. De escrita, no caso de Dionne. Talvez para mim também.
A Porta do Não-Retorno é esse lugar onde os começos parecem esvaziados e é essa casa vazia que cria a possibilidade de pertencimento e não-pertencimento. É uma abertura para entender os lugares e as pessoas que o habitam como ficções, mas isso não significa que um mapa não seja necessário, só não pode ser um mapa convencional.
Para chegar a essa Porta (que eu, num lapso, escrevi Porto) é preciso habilitar a escuta que suporta o mistério da interpretação.
sempre aprendo um tanto com seus textos e outro tanto ficam como mistério
Acredito que nos sonhos ou em "momentos do invisível", aqueles que por um breve momento enxergamos de verdade, entramos em contato principalmente com nós mesmos, saímos do cotidiano. Os sonhos sempre tem uma Pérola para desvendar.
Esse texto me fez encontrar uma saída.