o grito se faz abismo onde o silêncio se precipita
#04 Marguerite Duras, Moderato Cantabile, o gênero do som
o encontro com o livro
apesar de ler Marguerite Duras há muito tempo, nunca fui uma leitora voraz de seus livros. O que não é algo comum, quando conheço e gosto de uma escritora/escritor costumo ler tudo que encontro, aprendo a arranhar outro idioma caso não existam muitas traduções, mas com Marguerite Duras o movimento parecia ser outro, de espera. Esperava o livro encontrar seu caminho até mim. Esse processo/movimento me levava a achar, inadvertida, algum título sobre o qual nunca ouvira falar. E, no caso desse livro, o caminho do encontro começa numa preparação de viagem para Lisboa.
acho que é comum - quando estamos nos preparativos de uma viagem para outro país, onde se fala outra língua, parece que o corpo começa a se estrangeirar. Mexer em passaporte, com roupas de frio (coisa rara para quem mora no nordeste do Brasil), pesquisar lugares, tentar aprender o básico da língua do outro país, coloca o corpo num lugar de passagem. Não sei se vocês já tiveram a curiosidade de procurar a etimologia da palavra passagem, ela vem do francês passage e nasce como uma palavra para designar desfiladeiro; travessia (por mar) e fragmento de um texto.
a viagem começa ali, isso já deve ter sido escrito em inúmeros relatos. Só que esse, para mim, sempre foi um processo muito escondido. Não me dava conta dele. Até aquela viagem, só havia passado por isso indo para um país de língua diferente da materna. Foi quando precisei me estrangeirar para um país no qual as pessoas falam alguma coisa muito próxima da minha língua que a coisa mudou.
aí aconteceu uma coisa curiosa. Quando cheguei em Lisboa, não conseguia falar português. Sabe um filme de comédia, quando a personagem é meio atrapalhada e tenta falar uma coisa e sai outra? Era eu, no momento em que pisei em Lisboa. Respondia às perguntas em espanhol, num italiano macarrônico porque eu estava começando a aprender italiano na época, numa mistura de espanhol com italiano, mas não saía o português.
primeiro pensei, puxa é o cansaço da viagem, amanhã acordo e tudo fica bem. No outro dia, nada, a mudez da língua materna seguia. Pensava em português, mas na passagem pela garganta, alguma coisa se passava e o pensamento se perdia. Chegava na boca todo atrapalhado numa mistura que nem eu mesma entendia direito, que dirá meu interlocutor/interlocutora. Nesse ponto comecei a ficar preocupada porque estava em Lisboa para um congresso, então seria muito estranho se no dia da apresentação eu não conseguisse falar português.
no terceiro dia de viagem acordei e saí andando. Parei num lugar chamado Travessa do Fala-Só. Era uma ruazinha estreita, estava chovendo, comecei a ouvir uma música vinda de uma loja de discos. Lembro que era um fado, mas não consegui saber quem era, sei que era uma voz de mulher. Fiquei emocionada quando ouvi essa música, entrei no lugar; era uma loja de discos, mas tinha também um sebo, uma mistura de livros e música. Bati o olho numa prateleira de 5 euros e encontrei uma série de livros de Marguerite Duras, sendo um deles a edição de um título que não conhecia, Moderato Cantabile.
folheei o livro até a música acabar. Quando fui conversar com a pessoa no caixa para pagar, assim, como um passe de mágica, falei português. Quando ouvi a música, alguma coisa aconteceu e me destravou.
A música teve esse efeito de devolver a minha língua materna.
fui marcada fundo nessa viagem pela sensação de ter que me apropriar de uma língua que a priori me é dada. Fazer uma travessia pelo mar, passar por um desfiladeiro, um fragmento de texto. É um processo que conheço bem na literatura, não raro leio um livro escrito em português que parece ter outro idioma. Sempre me interessei por esses livros. Falar em análise tem muito desse movimento também, passar de falar integralmente a língua do Outro para encontrar algo nessa língua que seja tão singularmente seu que é quase como se fosse um idioma próprio.
o encontro com o grito
contei de uma forma leve porque hoje é engraçado, mas a verdade é que fiquei muito angustiada. Os primeiros dias em Lisboa me fizeram sentir a voz como um objeto que não me pertence. Um delírio em que a voz aparece como algo radicalmente diferente de quem fala. Imagine uma viagem no tempo, alguém que se vê pela primeira vez com o gravador e percebe que capturou naquele aparelhinho o som que sai da sua garganta. Foi assim. Ser embalada pela música e encontrar Marguerite Duras não me parece à toa, ela é alguém que faz isso o tempo todo na escrita, a voz do texto surge em meio a um esburacamento da ficção que chamamos de Eu. Em Moderato Cantabile, esse esburacamento se faz através do grito, ou melhor, do quase-grito. Algo desse instante em que tomamos fôlego antes de gritar.
Moderato Cantabile* é o oitavo romance de Duras. Publicado em 1958, tanto a crítica quanto a própria Marguerite situam esse livro como o início de uma virada em sua obra. Além disso, marca, para ela, o início da fama, o livro vende mais de meio milhão de cópias ao redor do mundo. Ou seja, um ponto de viragem. Num artigo chamado Moderato Cantabile e a erótica do fracasso, Beatriz Chneiderman e Laerte de Paula dizem que, até 1958, os romances de Duras tentavam escrever algo de um encontro amoroso e a virada perceptível em Moderato Cantabile é que o ponto de partida passa a ser o fracasso, um ponto de exaustão;
a própria Duras admite que é uma escrita que surge para lidar com uma crise no relacionamento com Gérard Jarlot. E a partir dessa crise, posterior separação, algo acontece na sinceridade dos seus livros. Numa entrevista de 1987, Duras diz que escrever Moderato Cantabile
“foi como descobrir os vazios, os furos que eu tinha em mim, e de encontrar a coragem de dizê-los. A mulher de Moderato Cantabile e aquela de Hiroshima Mon Amour era eu: extenuada por esta paixão, que não podendo tecer com a fala, decidi escrever”
ela não conseguia falar sobre esses vazios, esses furos, decide escrever sobre eles. Duras menciona essa virada em várias entrevistas, dizendo que até aquele momento escrever era algo muito burocrático, escrevia como alguém vai para o escritório, todos os dias, tranquilamente. E, de repente, tudo muda. Moderato Cantabile foi menos tranquilo. É um livro que inaugura algo além de uma descrição de coisas e paisagens. Duras coloca nesses termos: da saída de uma escrita que se preocupava com o imaginário para começar algo que tem mais a ver com esses furos e vazios descobertos em si própria.
e é um livro que tem a ver com a música e a voz, o grito, como mencionei antes. Fazendo um breve resumo, a cena inicial do romance acontece numa escola de música. Temos uma personagem chamada Anne Desbaredes acompanhando seu filho numa aula de piano. A pergunta que abre o romance é uma pergunta feita pela professora ao menino:
“- Você quer ler o que está escrito no alto da sua partitura?
- Moderato Cantabile
- E o que isso quer dizer moderato cantabile
- Não sei”
esse Não sei retorna de outras formas no decorrer do livro.
a conversa segue, a narradora descreve o ambiente, o embate entre a professora e o menino, a conivência da mãe com o que a professora descreve como desobediência. Anne acha bonita a desobediência do filho. É uma sala com vista pro mar, a tarde de sexta-feira está caindo, a luz começa a ficar avermelhada, a luz do arrebol. O ruído do mar entra pelas frestas da narrativa;
nós temos nesse primeiro momento o som do piano brigando com o barulho do mar e o som das vozes dos homens que estão saindo do trabalho
a paisagem apresentada no começo do livro é a paisagem sonora.
até que um grito irrompe e corta essa paisagem.
Na rua, diante do edifício, retiniu um grito de mulher. Um lamento prolongado, contínuo, se elevou, e tão alto que o barulho do mar foi interrompido. Depois parou, de súbito.
logo depois o ruído do mar volta, mas algo aconteceu com Anne Desbaredes. Ela vai até a cadeira do filho, o segura pelos ombros até quase machucar e Quase-Grita. Tenta voltar a um estado anterior, começa a repetir que é preciso aprender piano, que é preciso recomeçar, como se tentasse trazer de novo a ordem, mas algo se desarrumou profundamente. É um grito que irrompe como o olhar do cego no conto Amor da Clarice, só que aqui estamos fora do terreno das imagens.
ela desce com o menino quando a aula acaba e tem a notícia de que uma mulher foi assassinada. Deixa o filho na frente da escola, vai até o lugar, um café, e vê “uma mulher estava estendida no chão, inerte. Um homem, deitado, sobre ela, agarrado aos seus ombros, chamava-a calmamente: - Meu amor, meu amor…”
o que captura a nossa personagem é a imagem do homem que matou a mulher agarrado ao corpo dela, com um sorriso um pouco débil, sussurrando meu amor, enquanto beija sua boca e suja a própria boca de sangue. A cena que vem depois do grito. Esse gesto que parece o de um casal apaixonado, mistura o horror e o erotismo. É uma cena que me faz pensar muito no que o Bataille diz: “Do erotismo, é possível dizer, que ele é a aprovação da vida, até na morte”
essa cena gera uma repetição no livro instaurada pelo instante do grito. Anne Desbaredes volta ao café nos dias seguintes e encontra um homem chamado Chauvin que compartilha com ela a fixação. Ele estava lá quando o corpo é encontrado, já vira Anne no meio da multidão, mas ela não, e eles começam um relacionamento amoroso a partir do fracasso desse encontro.
o que captura os dois e faz eles seguirem é o horror, o mais impressionante é que mesmo com o sangue na boca o homem que matou não parava de beijá-la e Chauvin diz que é também por isso que ele segue voltando. E o grito. Que parou subitamente quando estava no mais alto de si próprio. Interrompido.
Anne diz que lembra de ter gritado assim quando estava parindo
aqui a violência do assassinato (feminicídio) e o momento do parto se unem para Anne Desbaredes num único som, sem significado. Não é isso que é um grito? Uma experiência de som fora do discurso, uma experiência do corpo que acontece fora da linguagem? Podemos pensar nesse grito como um momento de queda do sujeito, de desconcerto na estrutura, desenlace entre a voz e a palavra, podemos pensar que o grito ensaia um outro uso da língua e da linguagem?
o grito que possibilita unir, na linguagem, o nascimento e a violência de um assassinato?
o encontro com “não sei”
no ensaio O gênero do som, Anne Carson ** faz uma reflexão sobre um tipo específico de grito que parece caminhar junto com Anne Desbaredes. Carson traz um fragmento lírico do poeta arcaico Alceu de Lesbos, do século 7 a.C, associando uma maldição a um ruído perturbador de vozes femininas, o verso diz: “o eco transcendental dos gritos agudos tão terríveis (ololygas) das mulheres”. O som das vozes femininas que causam desconforto ao poeta é um tipo específico de grito destacado por Carson, o ololyga.
“Esse é um grito ritual característico das mulheres. É um grito agudo, lancinante, proferido em um momento específico de clímax na prática ritual (por exemplo, um momento em que a garganta da vítima é cortada durante o sacrifício) ou em um momento de clímax na vida real (por exemplo, no nascimento de uma criança); e também um elemento comum nas cerimônias femininas. O ololygga, com seu verbo cognato ololyzo, vem de uma família de palavras que inclui eleleu, o verbo cognato elelizo, e alala, com o verbo cognato alalazo, provavelmente de origem indo-europeia e, claro, de origem onomatopaica. Essas palavras não significam nada além do próprio som”.
esse grito foi se constituindo como algo do feminino porque os homens não se permitiam emitir esses sons. Para os homens era muito difícil pensar num som sem significado, um som que não passa pelo logos. De um modo geral, as mulheres na literatura clássica são uma espécie entregue ao fluxo caótico e descontrolado de sons – gritos agudos, lamúrias, soluços, lamentos estridentes, risadas altas, gritos de dor ou de prazer ou acessos de pura emoção.
nessa desarticulação entre som e significação é que parece residir o assombro desse grito. Duras escreve um livro com um pano de fundo musical iniciado com um menino dizendo não saber nada sobre o significado de Moderato Cantabile. Ele consegue tocar a música, mas quando a professora pergunta o que significa, ela espera como resposta a tradução do movimento da música, moderado e cantante. Mas sobre isso ele não sabe dizer, então o livro coloca desde o início, com o Não sei, essa desarticulação: será que é possível dizer o que significa a coisa, o movimento da música? O que é possível dizer desse grito?
“essas palavras não significam nada além do próprio som”
tem um outro momento em que o Não sei aparece, quando Anne Desbaredes e Chauvin conversam sobre o consentimento da mulher assassinada. Ela pede a ele para dizer se o consentimento era total, ou seja, se ela sabia que seria assassinada e se ofereceu em uma espécie de sacrifício.
“Anne Desbaredes ergueu a Chauvin um olhar ausente. Sua voz se fez fina, quase infantil.
- Eu gostaria de compreender um pouco por que era tão maravilhosa a vontade de que ele um dia chegasse àquele ponto.
Chauvin continuava sem olhar para ela. Sua voz estava calma, sem timbre, uma voz de surdo.
- Não vale a pena tentar compreender. A este ponto não podemos compreender.”
“não podemos compreender” traz notícias da desarticulação entre som e significado que parece ser a busca inaugurada em Moderato Cantabile para os demais livros de Duras. Mais tarde, no ensaio Escrever, ela diz que haverá uma escrita da não-narrativa, uma escrita breve, sem gramática, uma escrita de palavras sozinhas. Palavras sem apoio de uma gramática. Extraviadas. Ali, escritas. E logo deixadas de lado.
em uma entrevista dada a Xavière Gauthier, em 1987, Duras diz que no seu processo de escrita a palavra se tornou mais importante que a sintaxe. Primeiro a palavra se impõe, depois o tempo gramatical acompanha, de longe. Duras não trabalha com a palavra enclausurada, presa em um significado ou uma sintaxe. Ela parece interessada nesse impulso que deixa a palavra livre a tal ponto que transcende aquilo que é escrito - que faz esse movimento de saída pela voz como um objeto sem identidade e volta ao corpo de maneira transformada, buscando um lugar para se ancorar
o espanto em Moderato Cantabile está na boca aberta, no quase-grito, nisso que faz a virada na obra da Marguerite Duras para que o grito apareça nas suas outras personagens. Penso no grito da Lol V. Stein que é como se ecoasse esse grito da mulher assassinada.
se em Moderato Cantabile temos uma desorganização de Anne Desbaredes com esse grito que vem de fora e invade o espaço moderado e cantante construído com o filho ali naquela sala de música, no Arrebatamento de Lol V. Stein temos esse grito que sai da própria personagem, grito inteiro, sem descontinuidade, um grito que não tem esse movimento moderado e cantante. Esse grito, assim como o grito da mulher assassinada, é um grito que, mesmo saindo da garganta de Lol, aparece como um elemento que borra ou talvez a gente pode dizer, derruba as fronteiras entre interior e exterior.
é como se chegasse, pensando com Lacan, no limite em que o discurso desemboca para algo além da significação. Lacan fala sobre isso quando comenta o quadro O grito de Edvard Munch, no seminário Problemas cruciais para a psicanálise. Ele diz que o silêncio, a voz e o grito formam um nó. “O grito se faz abismo onde o silêncio se precipita”. O grito está, então, atravessado pelo espaço do silêncio sem que ele habite esse espaço. O grito parece provocar o silêncio e o sujeito aparece como significante nessa hiância aberta entre grito e silêncio. O grito é o limite da voz, ele rasga a garganta.
coincidentemente, é nesse mesmo seminário que Lacan é apresentado a Duras por uma das analistas que estuda com ele: Michèle Montrelay. Aliás, eu acho muito curioso como Lacan fica vidrado na questão do olhar em Lol V. Stein, como se esse arrebatamento que ele sofre pela Marguerite Duras fosse uma fixação imaginária. Todo o aspecto da voz fica de fora, apesar dele estar às voltas com isso ali. Isso acontece não só com a Marguerite Duras, mas também com as místicas, Teresa D’Ávila, Hadewijch d’Anvers... Ele é arrebatado, mas não se dedica ao texto, corre atrás da topologia (nada contra, inclusive amo), mas essa dimensão da voz enquanto objeto pulsional, fica esquecida…
mas isso é assunto pra outro texto.
*Nesse texto usei a tradução mais recente do livro, feita por Adriana Lisboa e publicada pela editora Relicário
** Tradução de Marília Garcia