um universo de margens
#10 o centro aparece num relance para nos lembrar do abismo e depois mergulha de novo na sombra, num movimento silencioso e constante

1.
não queria li acordar
Lembro do dia em que terminei de ler “Em busca do tempo perdido” olhei para o céu e vi o infinito. Era uma época de muito medo, você estava lá? Um medo difuso, sem objeto, medo-herdado-no-corpo, sem direção, e por não ter direção, ele se espalhava por todos os lugares. Às vezes, é melhor um medo que se sabe. Só às vezes. Não sabia, até hoje não sei. Mas intuía ter algo a ver com o tempo, a passagem dele, o tempo de quem morre muito jovem. Precisava olhar o tempo em outra forma. Por isso, achei uma boa ideia começar a ler Proust. Era uma idade emblemática, 25 anos, 1/4 de século, tinha algum sentido ir em busca do tempo.
Nos dois anos que levei para percorrer os seis volumes, poucas coisas mudaram. O medo continuou. Foram dois anos apertando as unhas de uma mão na palma da outra, essa imagem, para me certificar de que ainda estava ali. O medo me trazia a sensação nítida de perder o corpo. Era uma ausência de corpo. “Corpo de quem?”, perguntou, um dia, a analista. Segurava forte e continuamente as mãos para ter a certeza de que ainda estava ali quando tudo parecia derreter ao redor.
As mãos, um porto.
2.
Ao fim de dois anos, era uma noite de sexta, decidi que terminaria de ler ali, madrugada afora.
Você sabe como termina o livro?
Li a última frase e olhei para o céu. Por um instante que pareceu a eternidade e durou menos de um segundo, senti algo inédito. Perdi as mãos. Não precisava me segurar em nada, o corpo encontrara uma forma para a imensidão. Avistava um pedaço do mar e o céu e o mar eram uma coisa, só.
Eu estava só, abandonada, feliz, perto do
3.
Um tempo depois, durante a pesquisa do doutorado, encontrei um livro em que a autora diz: Proust é um fractalista ao investigar o infinito dos detalhes da memória.
***

4.
não queria li acordar
Estou há semanas lendo um romance que me faz pensar tanto em você. Chama-se “Orbital”, a autora é Samantha Harvey, o tradutor Adriano Scandolara. Chamo de livro com o infinito. Tem uma história-guia: quatro homens e duas mulheres, astronautas de diferentes países, estão em órbita na Estação Espacial Internacional. Durante o tempo cronológico de um dia são realizadas dezesseis voltas ao redor do planeta. Cada órbita, um capítulo.
No início, na órbita menos 1, se estabelece uma analogia do tempo que eles vão passar no espaço com o tempo de uma gravidez:
"Nove meses à deriva sem gravidade, nove meses com a cabeça inchada, nove meses morando numa lata de sardinhas, nove meses olhando a bocarra escancarada da Terra, e depois voltarão ao planeta paciente lá embaixo”.
Desde as primeiras páginas o livro estabelece essas vidas no espaço com a nostalgia do tempo e do espaço sem fronteiras experimentada, esquecida, quando o bebê e a mãe são uma coisa só. Depois vem a separação, a linguagem, mas desde o início o livro anuncia que para narrar a órbita dos astronautas ao redor da Terra, o tempo utilizado será esse. Como dizemos na psicanálise, tempo mítico.
5.
“A Terra é uma mãe esperando os filhos voltarem, cheios de histórias, arrebatamentos e saudades. Os ossos um pouco menos densos, os membros um pouco mais delgados. Os olhos repletos de visões difíceis de descrever”.
6.
O corpo do livro é um abismo. Na órbita 2 a voz narrativa conta que é aconselhável os astronautas anotarem todos os dias o tempo cronológico, do contrário “o centro se desloca. O espaço retalha o tempo em pedacinhos”. Uma experiência que pode ser aterradora na vida, sublime na literatura e vice-versa. Na vida, a nostalgia de um tempo que precisa ser esquecido para que o sujeito seja habitado pela linguagem. Na literatura, na arte, o lugar em que essa nostalgia pode encontrar uma forma - o deslocamento do centro pode ser uma brincadeira, uma proposta, um horizonte. E vice-versa.
Cada capítulo é uma órbita em que o tempo desafia a construção humana linear, progressiva, marcada por um antes e depois, e compõe-se de temporalidades que se avizinham e afetam mutuamente. Assim, o tempo tem seu centro deslocado.
Samantha Harvey traz para essa operação de deslocamento do centro o quadro Las meninas de Velázquez. Falo um pouco desse quadro no meu livro, vou me permitir a autocitação:
Nessa pintura, há a introdução de um espelho no centro que reflete a imagem do rei e da rainha, imagem que é transportada de maneira ilusória para fora da tela, trazendo como resultado uma intersecção de olhares que parece apontar para fora dela. O pintor deixa seu lugar usual, como alguém fora da pintura, e se coloca também como objeto da sua criação: empunhando um pincel, ele está exercendo a função de pintor também dentro do quadro. São perceptíveis alguns resquícios de imagens no quadro que parecem, propositadamente, explicitar o jogo de presença-ausência. Uma ausência que, de tão cheia, reverbera uma presença – faz barulho, com o intuito de chamar a atenção para o inacessível que envolve a cena. Os quadros que estão na parte superior da pintura parecem estar na sombra, existem de forma borrada, como se a imagem pressentisse que é preciso haver um abismo para chamar a atenção do olhar. Aparecem num relance para nos lembrar do abismo para depois mergulhar de novo na sombra, num movimento silencioso e constante.
Um bom jeito de falar dos movimentos do livro de Harvey é dizendo que o centro aparece num relance para nos lembrar do abismo e depois mergulha de novo na sombra, num movimento silencioso e constante. Gosto especialmente da solução que ela traz, nos últimos capítulos, para o que é esse quadro. Se um dia tiver uma reedição do meu livro, quero adicionar uma nota mencionando.
Em “Orbital” o personagem que se relaciona com a pintura de Velázquez diz que olhar o quadro por muito tempo traz a sensação permanente de um sonho inacabado, um pensamento selvagem. Ele olha para a Terra, olha para o quadro, e se dá conta de que estar ali é olhar para os rabiscos que fazia na infância sob o olhar terno e aterrorizador de uma mãe.
7.
Recuperei umas notas que escrevi em 2017, quando li pela primeira vez o conto “História da sua vida”, de Ted Chiang (tradução de Edmundo Barreiros). Existe uma primeira camada dita pelo conto: é através da linguagem que criamos nosso corpo. É no encontro com o Outro que o eu se constrói, principalmente a partir da imagem que lhe é devolvida, e por isso achei tão bonita a ideia pulsante no conto de que pensar no nascimento do sujeito como efeito de uma cadeia de significantes é refletir sobre as diferenças que nos constituem.
A psicanálise fala muito em singularidade porque, em oposição ao individual, o singular é aquele que consegue afirmar o "um" na relação com o coletivo. O individual está localizado numa instância do narcisismo que recusa a herança na qual ele é feito e por consequência há uma recusa em compartilhar. É o self made man que propaga a ideia de que ele mesmo se funda e se basta.
Já o singular pensa a transmissão e a ideia de se diferenciar e reconhecer no Outro como forma de ter um laço social mais fortalecido.
8.
“Singularidade: um ponto ou região de densidade de massa infinita em que espaço e tempo são infinitamente distorcidos por forças gravitacionais e que é considerado o estado final da matéria caída em um buraco negro”
(Merriam-Webster Online, citado no livro “No vestígio”, de Christina Sharpe)
9.
No conto de Ted Chiang, Louise Banks é uma linguista convocada para decifrar o idioma de alienígenas que pousaram em diferentes cantos do mundo. Um coronel do exército leva uma gravação do som que os extraterrestres fazem e ela diz: “A única maneira de aprender uma língua desconhecida é interagir com um nativo do idioma, ou seja, fazer perguntas, estabelecer uma conversa, esse tipo de coisa. Sem isso, simplesmente não dá”.
Ou seja, para aprender é preciso ter contato. Parece óbvio mas observar a resistência que o coronel tem a isso me remete ao discurso de alguns autoritarismos mundo afora. Ela tem acesso aos seres, chamados por outro cientista de heptápodes, e na descrição feita por Louise minha atenção se deteve ao fato deles não precisarem virar em nenhum momento porque possuem sete olhos que circundam todo seu corpo: Era estranho, mas lógico, com olhos em todos os lados, qualquer direção seria a da frente.
O relato do encontro de Louise com os heptápodes é intercalado com trechos de sua vida em que ela fala, principalmente, a respeito da filha. Enquanto está aprendendo essa nova língua, Louise recorda os momentos em que a menina crescia e se desenvolvia. Não à toa os objetos de comunicação dos alienígenas com os humanos são chamados de espelhos. As narrativas da vida de Louise acontecem nesse reflexo e em um endereçamento à filha: O que vou pensar, nítida e irritantemente, é que você não sou eu. Isso vai me lembrar outra vez, de que você não vai ser um clone meu, você pode ser maravilhosa, incrível, mas não vai ser alguém que eu poderia ter criado sozinha.
Essa impossibilidade que Louise coloca em jogo traz notícias do impossível inscrito em toda tentativa de representação. Impossível não quer dizer irrealizável, pelo contrário, é uma realização que carrega dentro de si o próprio fracasso. A linguagem permite que se jogue um véu na possibilidade de representação, por exemplo, é possível fazer o mundo caber nas letras que constituem o alfabeto. Mas é também a linguagem que nos revela essa impossibilidade.
10.
A psicanálise parece traçar um caminho que se assemelha ao de Louise ao aprender a linguagem dos heptápodes, desorganizando as instâncias do passado, presente e futuro quando Freud sistematiza a noção de inconsciente. Gosto de uma definição de análise que ouvi em algum lugar e, infelizmente, não lembro quem disse, mas é algo como um horizonte que olha para o passado e encontra a possibilidade de narrar o futuro. É uma espécie de começo como reconstrução, o que foi na verdade ainda está por vir.
No conto, Louise diz:
Normalmente, o heptápode B afeta apenas minha memória: minha consciência segue rastejando como fazia antes, um estilhaço reluzente se arrastando adiante no tempo, a diferença residindo nessas cinzas de memória, que estão tanto à frente quanto atrás: não há uma combustão real. Contudo, às vezes, tenho vislumbres quando o heptápode B realmente predomina e vivencio passado e futuro ao mesmo tempo; minha consciência se transforma em uma brasa de meio século de duração queimando fora do tempo. Eu percebo, durante esses vislumbres, toda essa época como uma simultaneidade. É um período que abrange o resto da minha vida, e a totalidade da sua.
11.
não queria li acordar
Durante o período da leitura de “Orbital” encontrei, ao acaso, um vídeo na internet que me encheu de ternura, trouxe reminiscências suas. Uma mulher chamada Ana da Silva, nascida no Crato, falava sobre a caatinga. Ela diz como aquela aridez é rica, são bonitas as cores das flores que surgem no tempo das chuvas. Caatinga é o nome tupi-guarani para “mata branca” - por causa da cor que a vegetação adquire durante a seca. Ela escolheu falar das cores. Anda no terreiro da casa e lá pelas tantas diz: “a terra cria e come a gente porque nós quando morre vai se enterrar. Que interessante… a terra é nossa mãe, ela cria e come”.
lhe ouvi nesse “que interessante… a terra é nossa mãe, ela cria e come”.
que interessante…
12.
A mãe de Chie, uma das astronautas, morre quando ela está no espaço. As voltas da estação espacial se confundem com aquilo que, no luto, traz notícias do corpo antes da linguagem, um “universo de margens, não há centro, apenas uma massa vertiginosa de coisas dançantes”.
Durante o luto, Chie lembra de uma fotografia que a mãe lhe entregou antes da viagem espacial. Ela está parada na praia, perto da casa da família, ainda não é a mãe de chie, é uma jovem recém-casada de 24 anos. Usa um casaco de lã pesada apesar de ser julho e do provável calor. No verso da fotografia, a inscrição: dia do pouso na Lua, 1969, na letra do pai. A mãe faz careta para o céu, onde uma gaivota passa, em alta velocidade. A gaivota, borrada, a mãe, nítida, imóvel, a letra, do pai.
Essa foto causa um enigma em Chie e ela localiza ali o mito daquilo que se tornaria - por causa da imagem e da letra, surge o desejo pelo espaço. “Como o passado é tão furtivo em moldar o futuro - ela tem certeza de que foi essa foto que gerou nela o primeiro pensamento sobre o espaço”.
A mãe de Chie escapou por pouco da bomba atômica que dizimou as populações de Hiroshima e Nagasaki. Chie se sente parte de uma linhagem que “escapou pelas rachaduras, a fissura da história, que encontrou uma saída enquanto tudo desabava”.
Talvez tenha sido isso que me fez lembrar do conto de Ted Chiang, daquilo que marca o corpo de quem fica, em uma perspectiva do mito individual de cada um que se fusiona com aquilo que na psicanálise chamamos de Outro.
É nesse espaço entre uma coisa e outra que me parece tecida a escrita de “Orbital”. Li uma resenha sobre o livro que ressalta o ritmo e a estrutura, aspectos mais significativos que a beleza do que se escreve sobre a paisagem vista lá de cima. Eu entendo, mas penso que o caminho é criar um espaço em comum entre as coisas, no deslizamento do “eu” para o “nós” que acontece diversas vezes no texto, um lugar onde a intimidade e o pequeno ensejem a mesma coreografia de pessoas observando o planeta do espaço.
No corpo dos heptápodes também não há centro, apenas uma massa vertiginosa de coisas dançantes.
E é desde esse lugar que eles falam.
13.
Há um trecho em que uma das astronautas, Nell, recebe um e-mail do irmão dizendo que é muito legal estar no espaço por um motivo humano demasiado humano: ela nunca está sozinha. O que chama a atenção do irmão é essa companhia constante dos colegas de missão, causa de estranhamento para Nell, legal é a última coisa que lhe ocorre quando pensa naquela convivência. “É brutal, desumano, avassalador, solitário, extraordinário e magnífico. Não há uma única coisa que seja legal”.
É uma coisa estranha, pensa. As fantasias de aventura não tem nada a ver com a rotina repetitiva da nave, dando voltas e mais voltas, com os mesmos pensamentos, dando voltas e voltas, juntos. Ela faz questão de dizer que não é uma reclamação, só não existe nome para o que sente.
Criei uma hipótese lendo esse trecho: as fantasias de aventura requerem uma individualidade que não é contemplada no livro. Requer um “eu” herói, heroína, que viva aquilo a partir de um nome próprio. Mas ali o que existe é um corpo fusionado, os pensamentos e as experiências de cada um se confundem, “eles não são exatamente distintos nem entre si nem em relação à nave. Fosse o que fosse que eram antes de virem para cá, quaisquer que pudessem ser suas diferenças em treinamentos ou de origens, de motivação ou caráter, fosse qual fosse o país de onde vieram e os embates entre suas nações, aqui estão todos equalizados pelo poder equalizado da espaçonave”.
Disse em um texto anterior, ao falar do fractal, que fronteiras são ficções. Em “Orbital” parece que essa ideia é levada a uma radicalidade, não à toa as semelhanças do estilo de Samantha Harvey com o de Virginia Woolf - uma menção que eu acho justa, não em termos de comparação, mas pensando que as duas escrevem a partir de uma busca em comum. Na apresentação da edição brasileira do ensaio “Um esboço do passado”, de Virginia, Ana Carolina Mesquita (também tradutora do livro) diz:
Para ela, o que lhe permite escrever é a consciência do que chama de “momentos de ser”, e foi em St. Ives que ela os experimentou pela primeira vez. A vida seria formada em sua maior parte de “momentos de não ser”, quando vivemos inconscientemente, como embarcações seladas. Mas, sem motivo aparente, e de modo totalmente fora do nosso controle, vem um golpe violento: o casco da embarcação se racha, a água penetra, e tem-se um momento de ser (…) Não existe separação entre o eu e o mundo; não existe, em última análise, individualidade.
14.
não queria li acordar
mas precisava dizer, desde que você morreu me tornei guardiã de imagens que até hoje povoam meus sonhos, leitura e escrita.
sua morte criou, para mim, a noção de que fiquei sozinha com o nosso idioma e, para conseguir criar qualquer rastro de movimento, preciso inventar uma forma, a cada vez. Por isso, poderia ficar aqui, infinitamente, falando sobre esse livro, escrevendo, trazendo notícias dele.
15.
do pouco que sei da sua letra escrita, guardo uma inscrição: este livro pertence a C.
na caligrafia, algumas letras têm forma de espiral.
foi sua voz que me transmitiu a noção de que algumas letras fazem um pacto com o infinito.
Li em algum lugar que Samantha Harvey escreveu “Orbital” em noites de insônia. É um livro escrito nesse espaço entre o sono e a vigília, quando tudo aquilo que nos permite dizer “eu” está em suspenso. Quando li isso entendi porque quis escrever esse texto com você, que também sofria de insônia e povoou minha infância com imagens da noite. Ao saber que você não dormia, quis, por algumas noites seguidas, não dormir também. Parecia que era a coisa certa a fazer, não dormir. Colocava música na radiola, dançava no quartinho de trás da casa, aquele que ficava na borda do quintal. Dizia que queria ver o sol nascer com você. O sol nascia com você. Era um tempo em que você era, para mim, a Terra vista pelos astronautas no espaço.
Nunca aguentava não dormir. Ali pela meia-noite caía no sono e só acordava 8h da manhã quando o sol já estava alto, ocupada com os barulhos da casa. Ia em sua direção, brava, perguntando:
Vovó, por que você não me chamou?
não queria li acordar.
Não são nem 7h da manhã e cá estou aos prantos após ler o seu texto, pensando em muitas coisas que... enfim, não adianta dizer. Muito obrigada por compartilhar seus pensamentos com o público. É um privilégio poder te ler.
Que lindo! Não queria li acordar 💗