uma forma para o infinito
#07 sobre o meu livro, textura, as planícies e a caatinga fractal
1.
Fiz vários ensaios para começar esse texto. Com ensaios, quero dizer: comecei muitas vezes. Em nenhum desses começos consegui ir adiante; esbarrava no momento de perceber que ou aquilo não chegaria em lugar nenhum ou se transformaria em alguma coisa a exigir pelo menos uns 40 minutos de leitura. Dentre os vários começos um envolvia dizer porque estou às voltas com a palavra textura desde o início do ano, passava pelo meu ceratocone, a dificuldade de enxergar à noite e chegava no documentário do Miyazaki sobre o processo de criação de O menino e a garça.
textura _
ato ou efeito de tecer;
trama, acepção 1;
união íntima das partes de um corpo; contextura;
ligação ou arranjo das partes de uma obra;
geologia: aspecto estrutural de uma rocha, determinado pelo tamanho, forma, arranjo e distribuição dos minerais componentes;
música: maneira pela qual uma obra foi estruturada, isto é, a quantidade e qualidade de ocorrências sonoras que ela contém.
(fiz anotações demais sobre textura para não compartilhar pelo menos o significado no dicionário)
2.
O outro começo envolvia o livro que me deixou obcec fascinada nesses primeiros meses de 2025: As planícies, do Gerald Murnane (tradução de Caetano Galindo). Li pela primeira vez no kindle, assim que terminei voltei a ler ainda no kindle, e não satisfeita, comprei o livro físico para ler uma terceira vez. Nós não chegamos nem ao fim de março e eu já li esse livro 3 vezes. Acredito que bati um novo recorde nessa vida de leitora. O máximo que já tinha acontecido foi terminar o livro e reler, mas ler uma terceira vez, em menos de 90 dias? Inédito.
E tudo isso impulsionada pela forma do livro. Fiquei desconcertada com uma coisa que o Murnane faz e que estou chamando muito incipiente e levemente: trazer para a literatura a fractalidade da paisagem sem usar muitas descrições. Nesse pequeno romance convergem as duas coisas que ficaram como resto na pesquisa desde que terminei o doutorado: o fractal e a escrita da paisagem.
Ele começa assim:
“Há vinte anos, quando cheguei às planícies, fiquei de olhos bem abertos. Estava à procura de algo naquela paisagem que apontasse para algum sentido complexo por trás das aparências”.
E o livro trata resumidamente de um jovem cineasta que vai para as tais planícies conviver um tempo com as pessoas e a paisagem para terminar o roteiro de um filme chamado “O interior”. Ao chegar lá ele só tem um caderno com uma etiqueta na capa com notas de contexto e material de inspiração, uma outra pasta com uma etiqueta que diz “ideias soltas - ainda não catalogadas” e um sonho. Depois que chega lá, bom, nós temos a escrita de um pensamento que busca dar textura a algo que à primeira vista (e talvez para um olho pouco treinado para ver) é plano.
3.
Numa entrevista Murnane diz que uma de suas intenções quando escreve (e aqui eu cito de memória, não fui atrás do texto para conferir) é transformar uma paisagem lisa e onde seria impossível se perder em um lugar de perda. Ele dá como exemplo: escrevo para transformar um campo de golfe em um labirinto, para criar a possibilidade de se perder em um campo de golfe. Escrevo para criar uma voz narrativa que se funda na racionalidade e está, ao mesmo tempo, perdida.
Isso tem a ver com o pensamento das pessoas que vivem naqueles lugares no interior da Austrália, as planícies, e tem a ver aparentemente com o resto da obra do Murnane, que eu ainda não tive tempo de conferir pois ocupada relendo As planícies. E o que me interessa particularmente em tudo que li dele falando sobre seus métodos é o desejo de escrever esse pensamento, fundado na dissolução da fronteira entre a paisagem e o seu habitante.
(Antes de se chamar As planícies o livro se chamou Paisagem com escuridão e miragem.)
4.
Nesse meio tempo, enquanto estava às voltas com a tentativa de unir esses dois começos, vi a exposição Caatinga Fractal e o Encontro da Terra Seca, Água Doce e Água Salgada, do Aislan Pankararu. E aí, minhas amigas, o caldo entornou. Porque se antes eu estava tentando chegar no fractal através de algo que não era dito como um fractal - Miyazaki, Murnane e muito menos meu oftalmologista falam disso assim -, Aislan Pankararu me fez o grande favor de nomear a paisagem a partir do fractal. E não qualquer paisagem, a caatinga é, para mim, o que as planícies são para o Murnane.
Não tenho o talento dele para escrever, tampouco tenho gigantescos arquivos com catalogações sobre o que escrevo (o método de escrita de Murnane é peculiar, exigiria um texto só para isso - fascinante, adianto), mas eu sei o que é se sentir parte de uma paisagem que carece de um tipo muito específico de narração, aquela que leve em conta a forma do pensamento das pessoas que lá vivem.
Sei também o que é querer dar um corpo a isso através de uma construção de frase que diga não apenas o que é esse lugar, faça descrições detalhadas dele, mas transmita como ele influenciou minha forma de pensar.
Na mesma entrevista que eu também cito de memória, sem ir ao texto conferir, Murnane associa o pensamento ao vento que sopra sobre as pessoas das planícies australianas. Como eles são acordados por uma brisa passageira e pensam: Ey, não somos deserto, somos outra coisa. Eu poderia dizer que é isso que Aislan Pankararu faz quando pinta a caatinga fractal. Ey, não somos deserto, somos outra coisa.
5.
E mais do que isso ainda não consigo dizer, além da imagem e do nome da exposição e das obras ter produzido algo que, em vez de solucionar a questão, embaralhou ainda mais. Diga-se de passagem, como sói as melhores imagens e nomeações conseguem fazer - vide a desmarginação e a frantumaglia da nossa Elena Ferrante.
Nome bom não é aquele que explica alguma coisa e fornece uma única via para seguir. É aquele que, ao ser dito, produz um efeito de não-significar, abre inúmeras possibilidades de caminho. É assim que me sinto com esse texto que, caso vocês não tenham notado ainda, seria o que andei anunciando por aí, sobre o fractal.
6.
Não deixa de ser engraçado que eu tenha escrito uma tese com isso e agora não saiba bem que caminho seguir numa newsletter. Provavelmente teria protelado por mais algum tempo, se uma coisa muito boa não tivesse acontecido: o livro que surgiu junto com a escrita da tese ficou disponível para venda essa semana. Pessoas começaram a comprar e eu me vi com a tarefa de falar alguma coisa sobre ele aqui nesse espaço. Que bom seria ter um ensaio maravilhoso sobre o assunto e ao fim anunciar: tenho um livro sobre isso, quem quiser saber mais, aqui o link. Mas nem sempre as coisas saem como a gente quer (e lendo isso que escrevi na frase anterior, talvez um anúncio assim não tenha nada a ver comigo) e eu já me sinto muito sortuda por ter esse livro saindo por uma editora muito boa e com um processo que me deixou muito contente. E a verdade é que eu já escrevi alguns ensaios sobre o tema, eles compõem o que está agora chegando no mundo com essa cara e esse nome:
7.
Corpo, escrita e fractal: ensaios com Elena Ferrante é um livro que surgiu da minha pesquisa de doutorado com a obra de Elena Ferrante, a teoria literária e a psicanálise. Mais especificamente com os livros que, a meu ver, trazem notícias de um corpo para uma autora ausente: Frantumaglia: os caminhos de uma escritora, As margens e o ditado (ambos com tradução de Marcello Lino aqui no Brasil) e o inédito L’invenzione occasionale. São textos que, em conversa com os romances de Ferrante e suas narradoras - já que como ela própria diz, sua criação é concomitante à criação de suas narradoras -, tecem um corpo para a autora que escolheu não apresentar uma imagem de si própria. Só se dá a ver através da escrita. E a hipótese que articulo nos ensaios da pesquisa é que o movimento de Elena Ferrante é o de tecer um corpo que se apresenta na forma de um fractal.
Assim como Murnane propõe um pensamento que desmargina o habitante com a paisagem da planície, Ferrante propõe um corpo que funda suas narradoras e leitoras na paisagem da escrita. E isso se dá porque a obra que ela desenha tem a estrutura de um fractal.
8.
O prefácio do livro foi escrito por Simone Moschen, psicanalista e professora da UFRGS, que tive a sorte de ter como orientadora no mestrado. Ela começa o texto assim:
Diz-se que fractal é o modo de nomear a característica de uma diversidade de formas que, em suas partes, repetem a estrutura do todo. Fractais seriam as samambaias, a concha de um caracol, a couve-flor… para nos atermos a formas próximas em que o arranjo das partes nos informa e repete, de modo recursivo, a estrutura da totalidade. Bem, cara leitora, o livro que tens em mãos não somente toma o fractal como um de seus vetores como é, ele mesmo, um livro fractal; uma escrita que, fruto de uma operação sofisticada, performa o tema sobre o qual discorre. Cada um de seus capítulos compõe um ensaio que funciona de forma independente dos outros, ainda que, quando reunidos pelo gesto de leitura, sua trama confira força contundente à reflexão sobre as articulações entre corpo, espaço, tempo e escrita.
A pergunta fractal que costura seus ensaios se insurge da leitura da obra de Elena Ferrante: o que sua escrita pode nos ensinar sobre a potência de um corpo (também de um corpo social) quando este não é experienciado a partir da estabilidade, e do consequente enclausuramento, que o eu propicia? Que corpo é produzido por uma escrita de si, sustentada no mínimo possível de eu, um mínimo que chega ao limite de sua desmarginação – neologismo que ganha força conceitual na obra da escritora italiana? Que efeitos políticos – no que ressoa nesse termo a vida em comunidade – a localização, ou, para usar um termo de Jean-Luc Nancy (2000, p. 12), a excrição, desse corpo pode implicar? É a esse ponto que a leitura deste livro nos leva; ponto em que o centro, como organizador da forma, tem sua função suspensa.
Eu me emociono sempre que leio esse prefácio. Escrever uma pesquisa tem suas dificuldades particulares, mas ela se aproxima de qualquer outra escrita no sentido de “o que eu imagino, devaneio, nunca jamais é a mesma coisa que consigo colocar no papel”. É uma operação impossível, escrever é sempre um esforço de trazer notícias da sua imaginação, do pensamento, para a materialidade do suporte externo. Fazer com que o papel funcione pelo menos como o rascunho daquilo que você queria dizer. É sempre de um rascunho que se trata, nunca de algo acabado. Quando escrevi esses ensaios queria muito que a forma deles ensaiassem a de um fractal porque para mim, muito mais do que falar de algo, era importante que esse algo estivesse ali em continuidade com a forma e que ela explicitasse o movimento do corpo e da escrita. Um movimento que é meu também. E espero que chegue, em quem sentir vontade de ler, de um jeito parecido.
9.
Mas como se dá essa relação do fractal, um conceito da matemática, com a literatura, a arte e a psicanálise?
vocês podem estar se perguntando.
E eu vou tentar falar um pouco no próximo texto. Talvez uma sequência?
O fractal é uma maneira de ver o infinito, então acho que posso trabalhar com a possibilidade de só começar sem saber muito bem onde vai dar.
“Alguns daqueles homens diziam ainda que quanto mais minha pesquisa me afastasse do meu objetivo declarado e quanto menos minhas anotações parecessem levar a resultados em qualquer filme que se pudesse ver, tanto mais crédito eu merecia como explorador de uma paisagem singular. E se esse argumento parecia me classificar como escritor e não como cineasta, isso não incomodava meus leais seguidores. Pois eram justamente essas suas negações que justificavam sua crença de que eu estava praticando a mais exigente mais louvável de todas as formas especializadas de escrita – aquela que chegava perto de definir o que era indefinível nas planícies ao tentar realizar uma tarefa diferente dessa. Era bom para os objetivos daqueles homens que eu continuasse a me descrever como cineasta; que por vezes aparecesse na minha revelação anual com uma tela vazia atrás de mim e falasse das imagens que ainda poderia exibir. Pois aqueles homens acreditavam com segurança que quanto mais eu me esforçasse por representar uma única paisagem singular – uma só disposição de luz e de superfícies que sugerisse um momento em alguma planície que eu conhecesse ao certo – tanto mais me perderia na multiplicidade de caminhos feitos de palavras e sem qualquer planície conhecida por detrás”
(As planícies, Gerald Murnane, tradução de Caetano Galindo)
Belo texto. Apreciei leitura.
Tati, você entende a paisagem como o território? Ou são instâncias distintas?